Olhar o passado: ao contrário de o lamentar e sofrer, temos que o transformar numa fonte de alegria, por pior que ele tenha sido.

O PRINCÍPIO DA GUERRA - SÓ MESMO DE CHECAS


Ponte de
D. Ana
Nesta região o Zambeze tinha uma largura considerável
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VIAGEM AO PRINCÍPIO DA GUERRA.Dia TREZE, para os mais supersticiosos será um dia muito azarado em que tudo corre mal; para outros uma data bonita. Este 13 coincidiu com o mês de Maio, dia de N.ª S.ª de Fátima, padroeira de Portugal. Para nós é o dia de desembarque na linda cidade da Beira em Moçambique; esta data não passou despercebida a muitos, que pediram a Nossa Senhora a sua guarda para os dias difíceis que iríamos passar muito em breve.
O Vera Cruz tinha finalmente acostado, depois de uma breve espera pela preia-mar. Na amurada, olhávamos, com certa apreensão para o cais onde vários trabalhadores negros se movimentavam numa enorme azáfama. Daqui em diante iria começar a verdadeira caminhada para o inferno da guerra. Nos nossos pensamentos pairava uma dúvida! Será que passados dois anos voltaríamos àquele cais para regressar è Metrópole, ao cantinho onde nascemos e onde deixamos muita dor com a nossa ausência?
Entretanto uma chuva diluviana abateu-se sobre a cidade; o cais é varrido e alagado de ponta a ponta e fica deserto, tudo fugiu para se abrigar. Minutos depois o Sol começa de novo a brilhar e agora com um calor redobrado. É altura de sair do barco para recebermos algum armamento. Cada Companhia tem direito a umas quantas espingardas e algumas pistolas, em princípio o suficiente para a segurança do comboio e, depois, da coluna que através do coração de Tete, nos iria levar até ao longínquo Furancungo, já muito perto da fronteira com o Malawi e com a Zâmbia.
Tomada a última refeição a bordo do Vera Cruz, este foi abandonado pelas tropas que iriam rumar para Manica e Sofala e para Tete. O comboio aguardava por nós, mas só partiria cerca da meia-noite, o que permitiu a todos, uma curta vista de olhos à cidade; ainda amedrontados lá fomos iniciando o contacto com a população autóctone.
Meia-noite, finalmente o comboio inicia a sua cavalgada para umas centenas de quilómetros, primeiro devagar, depois mais depressa e sem parar, até que o sono e o cansaço acabam por tomar conta de nós. A viagem nocturna foi passada com tranquilidade; agora que o dia desponta e após um esfregar de olhos, surge-nos uma paisagem desconhecida; um observar mais atento leva-nos a imaginar um cenário de guerra! Será que algum perigo poderá estar escondido por trás daquela vegetação? Afinal vamos a caminho da guerra, duma guerra onde o inimigo estará sempre oculto, à espreita duma melhor oportunidade.
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A passagem pelas várias aldeias junto da via férrea desperta em nós uma enorme curiosidade: as tradicionais palhotas cobertas com capim estão ali à nossa frente, os indígenas acenam à passagem do comboio como a darem-nos as boas vindas, nós retribuímos, mas não deixamos de pensar no perigo que iríamos enfrentar em aldeias aparentemente semelhantes, só que numa região adversa O comboio pára. As primeiras tropas descem com destino a Vila Pery. No cais, alguns militares já veteranos (cokuanas) estão à sua espera, aguardavam este momento há muito tempo; os camuflados novinhos em folha dos novatos (checas) realçam dos demais. Aceno a um conhecido de Tavira e desejo-lhes felicidades, ele retribui de igual modo. A marcha é reiniciada sob um calor abrasador. Dentro das exíguas carruagens o ambiente é sufocante e a água consumida sofregamente; a ração de combate salgada e picante ainda faz mais sede.
O fim da tarde aproxima-se e a chegada a Mutarara está próxima; é aqui que pernoitaremos.
O comboio pára junto à grande ponte de D. Ana que atravessa o rio Zambeze (neste local bastante largo). Os mais ousados saem e vão fazer um reconhecimento ao local: aqui existia um aquartelamento das nossas tropas e portanto oferecia alguma segurança. Vêem-se alguns cokuanas, na esperança de avistarem alguém conhecido, que interpelamos na procura de dados sobre a verdadeira guerra, para nós desconhecida, mas para eles já provada e vencida!
Novo dia, o segundo. A viagem é retomada, o comboio agora só parará em Moatize. As peripécias do dia anterior são reeditadas, o calor, o desconforto e a sede fazem-nos desejar o fim da viagem rapidamente; mas, o encurtar da distância é o aproximar da guerra, da tal guerra desconhecida, que fervilha nos nossos pensamentos desde o dia em que, numa ordem de serviço de um quartel, o nosso nome apareceu mencionado para uma comissão de serviço no Ultramar. O verde da paisagem do dia anterior começa a tornar-se mais sombrio, já não é tão verde…
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Uff! Finalmente surge Moatize a meio da tarde. É o fim de uma penosa viagem. O cais é invadido por centenas de checas, os camuflados ainda engomados causam um mal-estar, será o camuflado? Não! A causa é outra! É a porta da guerra já ali à frente. A linha-férrea tinha acabado, daqui para a frente era o Norte: só picadas, trilhos, montes, vales, capim, bases, emboscadas, minas e turras!... Tal como em Mutarara aqui também havia alguns militares à procura de conhecidos; encontro um amigo de infância que abracei efusivamente, estava no sector em Tete. Não pintou um cenário negro, na cidade bem se estava e o mato para ele era totalmente desconhecido. O calor era muito, aproveitando a sua companhia fomos beber e conversar sobre os amigos que deixamos algures. A sua despedida é mais um motivo de tristeza.
A noite chega cedo a estas paragens e também cedo é o recolher. É que de madrugada há a arrancada final para o mato. O rebuliço de uns acorda-nos, é o pegar no equipamento e avançar para as viaturas. Formatura como sempre, não era possível faltar alguém… mas, faltavam soldados no meu pelotão! Como? Teriam desaparecido? A resposta é rápida. O Caqueiro tinha perdido a sua espingarda e andava desesperado com a ajuda de outros a tentar encontrá-la. Viraram a carruagem do avesso e não encontraram a espingarda! Era a primeira perda. As viaturas tinham que arrancar, não podiam esperar mais, ainda por cima como íamos para um destacamento longe da sede da Companhia a viagem seria feita na coluna de outra Companhia. Era um bom início!
Receosos os militares instalam-se nuns camiões dos caminhos-de-ferro com toda a sua bagagem e equipamento. A coluna militar irrompe finalmente pelas picadas a caminho dos seus destinos. Cada metro de terreno era olhado por muitos olhos, tentando descortinar qualquer movimento suspeito. Afinal já avançávamos em terreno hostil, apesar de ainda longe do teatro de operações, nada espantaria se alguém nos quisesse brindar com uma emboscada de “boas vindas”. Ao fim de quatro ou cinco dezenas de quilómetros dá-se a primeira separação. Três Companhias tomam a picada rumo a Nordeste para FURANCUNGO, a outra, na qual vou integrado ruma mais a Noroeste para o BENE. A picada não sendo excelente tinha uma coisa de bom: estava num corredor desbravado para a futura auto-estrada Tete-Zâmbia. Mais umas dezenas de quilómetros percorridos e eis que o meu pelotão se separa da coluna para encetar o resto do percurso até ao destacamento na CHIUTA.
Aqui éramos aguardados pelos veteranos (já tinham estado em Mueda), a alegria deles e o seu à vontade contrastava com a nossa tristeza e com o nosso medo, mas que de certa forma serviu de lenitivo para nos tranquilizar.
Volvidas três semanas a espingarda tinha aparecido ao limparem a carruagem; esta foi encontrada debaixo dos bancos e entregue às autoridades. O Caqueiro livrava-se de boa!
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Narrado por:
Joaquim Santos
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Por vezes
o terreno acidentado causava-nos enormes dificuldades





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SÓ MESMO DE CHECAS…
.Estávamos no início da comissão, ainda decorria o terceiro mês. No Bene, o aquartelamento onde estava instalada a C. Caç. 2358 tinha sido atacado por duas vezes, como acontecia nestas ocasiões é um frequente disparar em rajada para todo o lado e assim as munições depressa se esgotavam.
A Vuende, local onde ficava a Companhia mais próxima, a C. Caç. 2359 (distavam uns 70 km), chega um pedido de ajuda para reabastecimento de munições e imediatamente se prepara tudo para acorrer à solicitação.
O meu grupo de combate é incumbido de partir para o referido local com o máximo de munições disponíveis. Eu estava inoperacional: no último patrulhamento assaram-me as pernas e sou substituído por um colega; na próxima saída dele eu ocuparia o seu lugar.
É precisamente nesta troca de lugares que a narrativa se vai desenrolar. O outro grupo de combate teve que sair para um patrulhamento de três dias e eu iria integrá-lo pela permuta com o referido colega.
A missão a cumprir é patrulhar as margens do rio Chiritse, desde Furancungo até Vuende, no sentido montante-jusante, visitar aldeias próximas do mesmo rio, desenvolver a psico e auscultar as referidas populações sobre possíveis actividades do In na região. As viaturas levam-nos até meia dúzia de km para Norte de Furancungo, onde nos apeámos para iniciar então a referida tarefa, numa região para nós totalmente desconhecida.
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A nossa pouca experiência neste género de guerrilha subversiva aliada ao receio de uma emboscada e até ao medo de nos perdermos, fazia com que todas as cautelas fossem tomadas. O primeiro dia passou-se sem que nada de anormal se verificasse, todavia a noite surpreendeu-nos com um terrível frio e para o qual não estávamos precavidos com agasalhos; é que estávamos relativamente perto do planalto da Angónia onde por vezes nevava.
Ao raiar do dia tivemos que acender fogueiras com a palha do milho duma machamba para nos aquecermos, mas com o alvorecer começaram a aparecer vários nativos a lamentar a perda das sortes. Para eles a palha deixada na machamba era para alimentar os espíritos na esperança de que estes no ano seguinte lhes desse uma boa colheita.
No segundo dia, numa zona onde havia bambu e por onde teríamos que passar, fomos surpreendidos por uma forte comichão em todo o corpo! No meio de tanto coçar alguém reparou num pó amarelo que saía dumas vagens dependuradas no bambu quando este era abanado; só podia ser esse pó a causa do problema.
O resto do dia e a noite passaram-se também sem problemas.
Mais tarde ficamos a saber que eram as vagens do feijão macaco!
No terceiro dia, já prevenidos do perigo das ditas vagens, iniciamos a parte final do percurso. A manhã aproximava-se do fim.
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Fizemos uma pausa para descanso e para comermos a ração de combate. Como já estávamos perto do nosso aquartelamento, a paragem poderia alongar-se. Montada a segurança com três postos de sentinela podíamos assim retemperar energias depois de três dias a calcorrear vales e veredas. Tudo estava bem! O acender de um cigarro até tinha outro prazer! Só que este sossego não durou muito! Ali no local escolhido, entre o capim que tinha sido cortado pela população de uma aldeia próxima, havia um buraco no solo por onde entravam e saíam uns “bichinhos” com asas. Este vai e vem dos “bichinhos” despertaram a curiosidade de alguns militares que rapidamente resolvem inventar um jogo: ver quem acertava com pedrinhas o mais perto do buraco (provável entrada de um enxame).
Era realmente uma colmeia que ali estava alojada. As pobres abelhas ao sentirem o perigo de intrusos e que ainda por cima as apedrejavam, enfureceram-se. Dado o alerta, todo o enxame se lançou em fúria sobre nós aferroando-nos a torto e a direito, de nada valendo cobrirmo-nos com os cobertores que trazíamos. Indefesos contra este ataque, abandonamos o local a fugir, deixando lá todo o armamento. Valeram-nos os molhos do capim junto à picada a que chegamos fogo; o calor desenvolvido pelas chamas e o fumo destas conseguiram afugentar as abelhas dando-nos a oportunidade de recuperar o armamento e de continuarmos a fuga que só acabaria no quartel!
Feito um rastreio, alguns tinham pago bem a ousada brincadeira ostentando inchaços por todo o corpo, pagando o justo pelo pecador!
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Em certos teatros de guerra as abelhas foram utilizadas como arma de ataque contra tropas portuguesas.
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Narrado por:
Joaquim Santos