Olhar o passado: ao contrário de o lamentar e sofrer, temos que o transformar numa fonte de alegria, por pior que ele tenha sido.

AS CARTUCHEIRAS - MISTERIOSO VUENDE

AS CARTUCHEIRAS.
Estávamos em Novembro de 1969; a época das chuvas já se tinha iniciado há algumas semanas e, com ela, o calor também se manifestava de forma abrasadora.
Em Tete, por essa altura, a temperatura média ultrapassava os 40º, o ar seco e quase irrespirável condicionava a nossa actuação, mas a isso éramos obrigados.
Dentro do PAO (Plano de Actividade Operacional) da Companhia é atribuída ao 4º. grupo de combate mais uma patrulha de três dias, que tinha como finalidade atingir uma base inimiga localizada na nossa zona de acção, a qual, por informações prestadas por um prisioneiro "turra" durante os interrogatórios efectuados no Comando do Batalhão, se situaria entre as localidades da Majanja e do Ponde, a Sul de Vuende.
Como o Alferes comandante do grupo de combate se encontrava ausente na Metrópole em gozo de férias, foi-me atribuído o comando já que era o mais graduado do respectivo pelotão.
A meio da manhã, depois dos preparativos que antecediam uma saída para o mato, a coluna iniciou o deslocamento em viaturas para a Majanja, onde nos apeámos para iniciar então a progressão em direcção ao ponto de referência indicado pelo prisioneiro.
Andados uns quilómetros e com o calor que já se fazia sentir, resolvemos arranjar um lugar apropriado para descansar, aproveitando a pausa também para comer a ração de combate e aguardar que a temperatura amenizasse um pouco.
As árvores com pouca folhagem quase não davam sombra, arranjar um lugar mais fresco para descansar era difícil, depois a mosquitada não nos deixava em paz, o que nos irritava!
Reiniciada a progressão com uma marcha moderada em direcção ao objectivo, eis que nos deparámos com um aldeamento e, com este, a esperança de reabastecimento de água – os cantis, na sua maioria encontravam-se com uma pequena reserva de água. Interpelados os nativos de onde retiravam a água, estes apontaram para o local. De imediato nos dirigimos para lá e qual não foi o nosso espanto ao verificar que se tratava de um charco onde vários porcos se refrescavam na lama. Desilusão total! Mesmo assim houve quem não resistisse à recolha dessa água imprópria e a bebesse, não dando mesmo tempo para que a pastilha de quinino fizesse o seu efeito. – Era necessário esperar 1 hora –
O dia aproximava-se do fim e a escuridão caía rapidamente. Havia que escolher um lugar que oferecesse segurança para passar a noite.
Com o tempo quente não era necessário a montagem de qualquer tenda; o maior perigo poderia advir da presença de répteis entre a folhagem, é que a maioria destes tinha uma mordedura mortal.
Novo dia! A alvorada no mato era muito cedo, o acender de um cigarro era instintivo! Era um momento só nosso! Por vezes a passagem de um avião fazia-nos recordar o que deixámos algures, o nosso pensamento ia com ele para bem longe!
Só depois deste ritual é que vinha o habitual leite com chocolate e o pão já seco do dia anterior; as guloseimas da ração ficaram no quartel, causavam muita sede
A caminhada reiniciou-se. O trilho levava-nos em direcção a uns montes que eram a fronteira da nossa zona de acção. Ultrapassá-los significava a possibilidade de encontrar tropas africanas amigas (recrutamento indígena alistado nas NT) e o perigo de confundi-los com o inimigo.
Interrogado o prisioneiro, este não dizia coisa com coisa, o que nos levou a bater a base desses montes, mas
sem resultado algum.
Uma pausa para descanso. Uma parte do pessoal dava indícios de má disposição, cólicas intestinais atacavam uns, a outros apareciam os vómitos.
O enfermeiro que nos acompanhava deitava as mãos à cabeça! Começou a distribuir pastilhas, pouco mais tinha na bolsa de enfermagem que pudesse ajudar.
Alguns dificilmente se aguentavam de pé, não dava para acreditar!
Era necessário encetar o regresso! Consultada a carta, é escolhida uma linha de água mais a Oeste que nos levaria na direcção da Majanja.
A debilidade física de vários militares é notória, mas entreajudando-nos iniciou-se o regresso ao aquartelamento. A ira contra o prisioneiro tornava-se evidente, sofrendo a retaliação de alguns pela socapa, apesar da nossa oposição.
Finalmente e com muito custo chegámos ao aldeamento da Majanja onde pernoitámos numa cantina ali existente. – A cantina do Zé da Majanja –.
Terceiro dia. A patrulha em si estava concluída. Com o pessoal debilitado como estava seria penoso submetê-lo ao sacrifício de uma marcha de onze quilómetros. Recrutado um estafeta entre a população (possuidor de uma bicicleta) é enviada uma mensagem ao Comandante da Companhia expondo a situação e solicitando o nosso regresso. Passado pouco tempo, o ruído dos unimogs fizeram-se ouvir ao longe. Era o alívio que se aproximava!
Era Domingo. Depois de um banho retemperador ainda deu para se ir à missa na missão jesuíta de São Miguel do Chiritse – os que podiam, claro!
As tardes de Domingo eram aproveitadas por uns para uma sesta enquanto outros escreviam para os familiares e amigos. Depois era o joguito de futebol entre o pessoal, o que despertava o entusiasmo de todos.
Após o almoço entreguei o relatório da patrulha ao nosso Capitão que passado pouco tempo vem ter comigo e comunicou-me que tinha de sair novamente com o pelotão para repetir a patrulha. Segundo uma mensagem expedida do Comando, o relatório sobre o prisioneiro era credível e eu é que não tinha seguido as indicações do mesmo. Não sairia de imediato, mas no dia seguinte. Teria que partir bem cedo.
Fiquei revoltado e discordei da saída de parte do pessoal. Era impensável mandar novamente para o mato homens no estado lastimoso em que alguns se encontravam. Respondeu-me que não tinha mais pessoal para os substituir e que nós já conhecíamos o terreno. Retorqui, que para ensinar o caminho bastava eu e que se não acreditavam na minha palavra que arranjasse um oficial para comandar a nova operação.
Feito um rastreio aos mais válidos e com o reforço de novos elementos lá se avançou para nova operação, agora sob o comando de um Alferes.
Por termos sido bons rapazes, iríamos desta vez cinco dias!
Chegados ao local onde o prisioneiro dizia situar-se a base, apeámo-nos das viaturas, mas incrível! A direcção que agora nos apontava era no sentido oposto à indicada na primeira patrulha! Apontava para um monte que se avistava à direita da picada. Meio desconfiado, o Alferes ordena que as viaturas aguardassem por nós. Embrenhados no mato, iniciou-se a batida à zona até ao sopé do referido monte. Aqui chegados e sem encontrar qualquer rasto ou vestígio, preparámo-nos para a escalada até ao cume do mesmo. O resultado foi o mesmo!
Mais uma vez fomos enganados pelo prisioneiro...
Chegados às viaturas, o preso foi confiado à guarda da escolta para que fosse entregue ao nosso Capitão para ser devidamente tratado e enviado para Furancungo, assim como uma mensagem verbal do resultado da
missão.
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A operação de cinco dias fora dada como executada. Restou-nos iniciar o regresso ao aquartelamento, evitando o demasiado calor nas horas mais críticas do dia e aproveitando os locais onde houvesse água para pernoitar e recuperar dos efeitos nefastos dos dias anteriores.
No fim do quarto dia, o Alferes enviou uma mensagem via rádio para o quartel pedindo o abastecimento de água. O nosso Capitão, compreendendo o pedido enviou as viaturas com a água. Já estávamos deitados quando o roncar dos motores dos unimogues se fizeram ouvir – eram audíveis a boa distância, o levantar para recolher a água é imediato. Entretanto é dada ordem para subir para as viaturas. O nosso Capitão dera permissão para um regresso antecipado ao aquartelamento. Não seria um prémio mas o reconhecimento de uma injustiça
Já no quartel, estava a tomar o meu banho para depois ir descansar, quando num alarido me apareceram vários militares aflitos! Um deles tinha deixado as cartucheiras esquecidas no local onde estivéramos deitados antes do aparecimento dos unimogues. Queriam que fosse pedir autorização ao nosso Capitão para que os deixassem ir resgatar as respectivas cartucheiras. Num acto de solidariedade com o camarada, vários militares se tinham oferecido para integrar a coluna, na maioria pessoal do arame farpado – raramente saíam do quartel, excepto alguém para comandar esta.
Assim não tive alternativa senão em acabar por fazer mais cinquenta quilómetros e permitir com que o soldado em causa, tivesse uma noite sossegada e poder descansar de todos aqueles dias no mato.
São momentos como estes que passados quase quarenta anos nos fazem relembrar o quanto uma guerra é injusta! Mas que no fim consolidou amizades para toda a vida!
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Publicado por:
Joaquim Santos

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Lado Norte

Por aqui
o IN atacou
o quartel
mas sem
sucesso
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Dois quarteis em Vuende
.Nestes longos 38 anos, que é o tempo decorrido desde que deixámos aquele quadrado de terreno cercado de arame farpado, vários comentários foram surgindo nas conversas que mantínhamos principalmente nos nossos almoços-convívio.
Desde muito cedo generalizou-se a opinião de que o “nosso” aquartelamento teria sido mudado para outro local, para junto da pista de aviação. Um ataque IN teria destruído parte das instalações e perante este cenário, o comando teria optado pela sua mudança. Como é que a novidade apareceu é que ninguém sabia dizer: uns comentavam que tinham ouvido dizer, outros parece que foi fulano, mas a verdadeira fonte ninguém sabia.
E este desconhecimento tornou-se quase um tema obrigatório nas nossas conversas quando alguém da 2359 se encontrava.
Com o aparecimento das novas tecnologias e da informática, com o desenvolvimento e facilidade das comunicações este mistério tinha os dias contados.
A “blogmania” também nos tocou e daí à criação de um blog sobre o Batalhão de Caçadores 2842, foi um ápice. O nome foi escolhido em cima do joelho e não houve tempo para pensar num título abrangente sobre a região ou sobre qualquer acidente geográfico.
Nasceu assim o nosso “OLHAR O PASSADO”. Logo foram postadas imagens de Vuende e de Furancungo que iam marcando a presença do Batalhão na Net.
Passado precisamente um ano, um ex-camarada que está a editar um livro sobre os aquartelamentos das N/T em Tete e a quem eu tinha cedido imagens de Vuende, confronta-me com a seguinte notícia: em Vuende teria existido um outro aquartelamento! Nas suas pesquisas em arquivos militares descobriu nos registos do Bat. Cav. 2903 que foi o que rendeu o nosso, o seguinte texto:
Citando:
«O BCAV 2903 fez deslocar para o Vuende em 17 de Setembro o Pelotão de Sapadores a fim de iniciar a construção do aquartelamento.
Em 17 de Outubro o Comando deslocou-se para o Vuende , pois que a par da necessidade de impulsionar uma actividade operacional, teve o BCav que construir do que então era uma mata, um aquartelamento, que aos poucos e poucos ia tomando forma.
Limpou-se o mato, transportou-se areia e pedra, fizeram-se blocos de cimento, obteve-se madeira, tudo isto agravado pela chegada da época das chuvas que ainda mais dificultaram o esforço enorme que as NT desenvolviam.
Todo o pessoal trabalhou com entusiasmo pois sentia que o novo quartel era obra sua.
As chuvas fizeram com que no quartel, começasse a aparecer inúmeros e pequenos pântanos, que aos poucos e poucos se transformava num mar de lama. Seguidamente começaram a aparecer as doenças, motivadas pela água estagnada, sendo as baixas
, por este motivo, muito elevadas.
E tudo sós, terrivelmente sós.» Fim de citação.

Esta notícia não era novidade para nós, uma vez que durante muitos anos tal foi um enigma, assim as nossas dúvidas começavam a ser desvanecidas. As conversas de muitos anos iam ser finalmente esclarecidas.
Só não se compreendia a descrição: - desbravaram um terreno cheio de mato e onde não existia nada? Então no dia 17/Fev./70 os checas não ficaram no nosso lugar? As fotografias foram inventadas? - Não! Aquele texto só podia ser inventado!
Mas era um documento oficial! Não se ia inventar aquilo com o intuito de ficarem com os louros da edificação de um aquartelamento.
Contactados vários ex-combatentes que passaram por Vuende nos anos seguintes, todos confirmavam que as fotos eram as do mesmo quartel. Porém, o meu amigo editor fornece-me um contacto dos nossos tempos em Vuende, o guarda Pinto, que chefiava o posto das milícias e que permaneceu naquela região durante mais alguns anos.
Um telefonema e eis que do outro lado num sotaque alentejano, surge o Sr. Pinto. Apresento-me. Não sabe com quem fala, mas recorda-se de um ou outro elemento da companhia 2359 e que me relata factos passados posteriormente. Contactados mais dois ex-camaradas do Bat.Cav. 2903 estes confirmam tudo o que a seguir se transcreve.
A dúvida desfaz-se finalmente: em Vuende existiram dois aquartelamentos em simultâneo! O das tropas de quadrícula e o edificado de novo para albergar um Comando e CCS. O Comando do “Sector F” tinha chegado à conclusão de que Vuende era o lugar indicado para uma centralização de serviços.
Escolhido o local para o novo aquartelamento este foi construído entre a picada para a Missão Jesuíta e a pista de aviação depois da antiga aldeia de Pondamale que entretanto fora destruída. Alojados em tendas de campanhas os militares foram entretanto construindo as instalações a par da actividade operacional.
A época das chuvas que entretanto chegara, veio agravar as precárias condições em que estavam alojados os militares. O terreno impermeável originou a criação de charcos, o rodado das viaturas revolviam o piso tornando este num autêntico lamaçal, propício à formação de outros charcos mais pequenos. A estagnação das águas era inevitável!...
As doenças instalaram-se também no local, as sezões apareceram em elevado número e os militares eram evacuados com frequência para vários hospitais da Província. Em poucas semanas a companhia ficou muito reduzida tal a gravidade da doença, que segundo comentários era de difícil diagnóstico.
Rezavam certos rumores em Vuende, que a causa se devia ao facto do aquartelamento ser construído no local de um cemitério e aos espíritos do “Fumus Pondamale” chefe da antiga aldeia desmantelada e que foi assassinado em 03/Jan. /69.
Mais tarde este Comando foi transferido para a Casula; o que era aproveitável foi aproveitado, o resto foi destruído e arrasado.
Em Vuende, porém, ficou sempre o velhinho aquartelamento construído em finais de /67 pela C.Caç.1557 e renovado e melhorado por nós (CCaç2359) durante a n/estadia. Eram 3 barracões é certo, mas era a nossa casa que sempre nos deu segurança.
Após a nossa passagem de Mai./68 a Fev./70 ainda passaram por aquele local mais 3 companhias: a C.Cav. 2654; a C.Caç. Tete e a 3ª C.Art do B.Art, 6223
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Panorama
de Vuende
em dias de
maningue
chuva
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.Apesar de ter sido alvo de dois ataques a Bandeira Portuguesa sempre flutuou no mastro erguido na parada. “OS CHECAS HONRARAM OS COKUANAS”.
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Publicado por:
Joaquim Santos